sábado, março 18, 2006

Carta dum contratado

Eu queria escrever-te uma carta,
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta,
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua
dos teus ohos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...

Eu queria te escrever uma carta,
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta,
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento.

Eu queria escrever-te uma carta,
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...
Eu queria escrever-te uma carta...

Mas ah, meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem,
que tu não sabes ler
e eu - Oh! desespero - não sei escrever também!

António Jacinto
Poeta angolano

Poesia escrita em período colonial, lançada no livro Poemas, em 1961. O eu-lírico chora por ter sido afastado à força de sua amada e de sua terra para supostamente trabalhar como contratado (sem recebimento e sem direito algum, relegado a um trabalho forçado) em plantações para o colonizador português. A exploração do angolano é denunciada neste poema, bem como há exaltação da cor local e humanização do negro. O analfabetismo e a miséria ainda hoje em Angola é de índice alarmante.

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